segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Uma história que podia ser a sua (ou a minha, ou a de qualquer um(a))

O que acontecia na verdade com ela é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam -- ela havia por medo cortado o amor. Mas havia cortado o amor sem ter em mãos nada que o substituísse -- passando a creditar a nada sua razão de existir. E assim os dias lhe passavam todos iguais, donos de uma rotina absoluta que só se dissolvia um pouco durante algumas noites quando ela se permitia, no que chamava de liberdade, uma embriaguez que a afastava da monocromia de sua vida.

O problema era que quando o sol raiava no dia seguinte o inebriamento já havia passado e o dia voltava a ser irrevogavelmente cinza. Sem o amor, vivia numa permanente dualidade: por fora, uma alegria e uma empolgação aparentes e convincentes em relação a tudo que pudesse se passar por distração e servir para esquecer um pouco o que se passava por dentro: um vazio de alma que só sentia quem estava perdido no seu próprio mundo e no alheio, sem forma visível de contato.

Foi então que ele apareceu na sua vida. Ele, que não se aproximara dela por mais do que o desejo pelas belas curvas de seu corpo, sabia enxergar além das aparências e agora parecia perceber o quão inatingível ela era. E não apenas inatingível por ele, mas por ela própria e pelo mundo. Ela vivia numa espécie de alienação que a afastasse do vazio que o abandono do amor lhe causara, e nisso ela se alienava de si mesma e mantinha seu lado mais interior invisível -- a ponto de nem ela conseguir recordar a essência de seu âmago. E então se reduzira ao próprio escapismo de seu passado e da dor que o acompanhava.

No início, estava apenas interessada em esquecer junto dele. Ele também parecia fugir -- não se sabe bem de quê, mas ele avançava rápido em qualquer direção que o lembrasse pouco de onde vinha, até que percebeu que uma fuga conjunta era impossível pois um sempre lembraria o outro de que estavam correndo e acabariam por continuamente reviver o que tentavam, juntos, esquecer. Então a pretensão aumentou e agora ela queria que ele, sendo, suplantasse tudo o que qualquer um tinha chegado a ser em todos os infinitos séculos de existência do mundo. Mas logo abandonou também a ideia por motivos de inviabilidade: o mundo era velho demais e sempre haveria alguém mais bem sucedido na tentativa de: ser. Contentou-se enfim em ser desejada.

Já fora desejada por inúmeros homens antes mas o desejo que ele oferecia era diferente: não era um desejo puramente carnal de quem quer possuí-la mas um desejo paciente, de alguém decidido a saborear cada infinitésimo do que ela era, até os recantos de alma que ela nunca tinha visitado. Sobretudo era um desejo de alguém que queria possuí-la por inteiro. E em sua espera ela se deleitava, sabendo que podia brincar de se vestir e se despir com os vários guarda-roupas de peles e personalidades e vontades que acumulara na sua curta experiência de viver. Sabendo que o teria pacientemente observando, aproveitando cada átimo da espera como se fosse a própria realização do desejo contido.

Mas esperar em excesso invoca a impaciência que só sente quem está perto demais do que quer e logo se viram no impasse de não saber como lidar com o momento em que se encontrariam por fim. Até porque havia a dúvida: o que fazer quando se tem alguém? Possuir uma pessoa é muito mais grave que possuir um objeto: enquanto um objeto pode ser descartado quando sua utilidade acaba, os laços que prendem pessoas são muito mais delicados e a posse é muitas vezes mútua. E ela não estava sequer certa sobre se estava disposta a despender o esforço necessário a quem divide-se entre ser e ter propriedade.

Na verdade, não tinha sequer certeza sobre se quereria se envolver: ele despertava nela, sim, um desejo sincero e profundo como o desejo do que não se conhece e do que não se pode desvendar, mas às vezes pensava que era muito o que pedia em troca: ela toda. Ele a exigiria em sua plenitude e isso a colocaria em contato com sua parte mais íntima que ela evitava encarar. Sim, tinha medo principalmente da intimidade: não da intimidade de corpos porque a esta já estava habituada, mas da intimidade de almas que era do que ele tinha fome.

A saída era desistir. Se invadir um corpo era crime hediondo, invadir uma alma era tão pior que ainda era tabu -- fazia-se silêncio sobre sua gravidade como que para evitar dar a ideia do crime a alguém. Ela encontraria um outro ele: um a quem pudessem se possuir sem a necessidade de criar laços. Ele podia não provocar nela um desejo como o outro tinha sido capaz de provocar. Podia inclusive não desejá-la tanto. Não tinha importância. Se sobretudo ele assinasse o pacto silencioso prometendo não a descobrir, tudo ficaria bem.

Um comentário:

  1. Esse post nasceu da minha leitura de "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres". A ideia era fazer uma espécie de uma paráfrase de um dos capítulos: Clarice começava com "O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam -- ela havia por medo cortado a dor." e eu pensei "e se em vez da dor a história falasse sobre alguém que cortou o amor? E, bom. O resto taí em cima.

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