sábado, 18 de dezembro de 2010

Da infância redescoberta na profissão

Da introdução da dissertação de mestrado de Marcelo Hashimoto defendida no IME-USP em 2007 -- que todas as pessoas pudessem ter tanta poesia no que escrevem:
"Imaginemos uma criança. Crianças nada mais são do que indivíduos que estão vivos há pouco tempo. Para compreender o significado de pouco nessa definição, o leitor deve se desvencilhar da frieza dos números e pensar principalmente em insuficiência; em pessoas cuja ingenuidade ainda não foi suficientemente maculada pela experiência; em criaturas cujo entusiasmo ainda pode ser despertado pelo mundo; em seres para quem a existência ainda não se transformou numa amarga trivialidade; em infantilidade espiritual, não meramente física.
Contemplemos essa criança diante de um doce e de outra criança. O doce é o seu objeto de desejo. A outra criança é o seu rival. Quando o desejo e a rivalidade ocorrem simultaneamente, ambos tornam-se as sementes de um conflito que pode irremediavelmente destruir relacionamentos ou estilhaçar sonhos. Uma criança normalmente possui a obstinação necessária para enfrentar tal conflito, mas raramente possui a sabedoria necessária para resolvê-lo.
Imaginemos agora um adulto. Estamos nos referindo a um indivíduo que está vivo há muito tempo. Tempo suficiente para transformar a ingenuidade em cinismo, suficiente para converter o entusiasmo em tédio, para remover da existência tudo o que há de especial. Contemplemos esse adulto diante de duas mulheres, incapaz de optar por uma delas. Ambas apresentam virtudes equivalentemente intensas e defeitos igualmente irrelevantes. Um adulto que sustenta experiências de peso considerável sobre seus ombros normalmente exibe uma racionalidade capaz de comparar duas mulheres sob o ponto de vista físico e material, mas raramente exibe os sentimentos capazes de considerar uma delas especial, independentemente da sua aparência ou dos seus bens.
A criança não compreende que poderia simplesmente compartilhar o doce com a outra. O adulto não compreende que deveria valorizar a importância do aspecto emocional. Uma criança tem admirável paixão, mas sofre por não ter conhecimento. Um adulto tem respeitável conhecimento, mas sofre por não ter paixão. Tanto a paixão como o conhecimento não são capazes de resolver todos os problemas sozinhos. Emoções podem criar laços permanentes entre amantes, mas podem dissolver eternamente laços entre rivais. Duas crianças podem compartilhar um doce, mas duas mulheres não podem compartilhar a alma de um homem.
O poeta francês Charles Baudelaire certa vez afirmou que há muito em comum entre aquilo que nós chamamos de inspiração e a alegria espontânea com a qual uma criança consegue absorver as cores e as formas do mundo. Ressaltou, no entanto, que todo o material abstrato acumulado por essa absorção só pode ser adequadamente organizado pelo pensamento racional de um adulto. A genialidade, portanto, nada mais seria do que um redescobrimento da infância. Uma capacidade intrínseca de inebriar-se com o mundo e ao mesmo tempo saber expressá-lo.
O contexto no qual as afirmações de Baudelaire estão localizadas é a arte. Mais especificamente, o poeta refere-se à inspiração e à genialidade de pintores. A área onde esta dissertação de mestrado se encontra é a ciência da computação. O conteúdo deste texto é o resultado do esforço de matemáticos. A pertinência da matemática ao escopo das artes é uma questão filosófica deveras complicada, na qual não pretendemos nos aprofundar. No entanto, ela não precisa ser esclarecida para que possamos adaptar as afirmações de Baudelaire a este trabalho.
Neste mestrado, estudamos conjuntos gerados por combinações inteiras não-negativas de vetores. Apesar de sua razoável extensão, a expressão combinação inteira não-negativa nada mais é do que um sinônimo excessivamente sofisticado de soma. Uma combinação inteira não envolve frações. Uma combinação não-negativa não envolve subtrações. Estudar combinações que são ao mesmo tempo inteiras e não-negativas significa, sob certos aspectos, revisitar a época em que não conhecíamos nenhum conceito matemático além da soma. Redescobrir a época em que éramos simples crianças, incapazes de aplicar o conceito de divisão sobre um doce. No entanto, ao rever um cenário que esteve presente em nossa infância, não é necessário que o contemplemos apenas com olhos juvenis. Podemos combinar a curiosidade infantil com a maturidade matemática.
Um equilíbrio adequado entre esses dois elementos é necessário para o estudo de problemas de otimização combinatória. Nesses problemas, o objetivo é otimizar uma função em um conjunto discreto e normalmente finito. Uma primeira impressão a respeito dessa descrição é a de que ela descreve problemas simples. Mais simples do que uma otimização em conjuntos contínuos, pois de certa forma estes são maiores e mais complexos. Trata-se, no entanto, de uma impressão equivocada. Conjuntos discretos não são simplesmente menores, eles são mais restritos. Conjuntos contínuos não são simplesmente mais complexos, eles são mais flexíveis.
Os problemas combinatórios são formulados dentro de um mundo discreto, no qual os doces são tão indivisíveis quanto para uma criança. No entanto, aqueles que estudam otimização combinatória não são crianças presas a técnicas discretas. São adultos capazes de utilizar técnicas variadas, sendo muitas delas baseadas em conceitos contínuos. São pesquisadores entusiasmados e ao mesmo tempo estudiosos, que podem reconhecer em sua área uma infância redescoberta na ciência da computação."